Robert Reid Kalley, pioneiro na evangelização do Brasil

A forte presença do catolicismo no Brasil acontece desde 1500. Naturalmente, outras religiões eram associadas a invasões de supostos hereges, como franceses, ingleses e holandeses, que no conceito de Portugal haviam sido expulsos pela graça divina e a instrumentalidade do seu poder temporal, na figura dos Reis e representantes.
Com a expansão territorial, tornou-se mais complicada a gerência dos campos de missões da igreja. O papa Alexandre VI, além de dividir as terras do novo continente, Tratado de Tordesilhas, permitiu ao rei de Portugal criar e nomear cargos eclesiásticos, levantar o dízimo nos cultos, intermediar comunicações eclesiásticas com o Vaticano e até autorizar atas pontificais.
Havia uma mistura dos conceitos de fé e patriotismo, empreendida na evangelização do Brasil. Provocou desvios em relação à religião histórica, distanciando-se do que realmente era relevante e original na mensagem.
O liberalismo do segundo imperador permitiu a possibilidade de recepção de missionários estrangeiros no país, assegurando-lhes seus direitos constitucionais, refreando a pressão ultramontista que tendia ao retrocesso desta questão.
O testemunho de Daniel P. Kidder sobre a tolerância no Brasil Império é o que desperta a oportunidade para o surgimento do profeta, homem que no tempo certo rompe com o tradicional, infiltrando suas novas ideias. Trata-se do Dr. Robert Reid Kalley.
Kalley era escocês, e como tal, era como todo cidadão escocês. Burguês, educado, tinha em seu projeto de vida os quatro pilares iluministas: tolerância, humanitarismo, utilitarismo e a pedagogia.
Os escoceses, quanto a fé no século XIX era fortemente influenciado pelo Puritanismo e o Pietismo, que provocavam m estilo de vida pautado pela sobriedade e zelo no cumprimento das Escrituras, acrescentado alguns preceitos, como evitar luxo, opor-se às bebidas alcoólicas, não ir a teatros, enfim, havia um espírito de independência e que deveriam fazer parte do modo de ser de Kalley.
Dr. Robert R. Kalley nasceu em Mount Floridan, no condado de Lanarck, imediações de Glasgow, na Escócia, em 8 de setembro de 1809. Seu pai, Robert Kalley era comerciante de chá, e destacado com muito alegre, comunicativa e jovial. Era viúvo e tinha uma filha, Jessie Macredie Kalley.
Já sua mãe, Sra. Jane Reid Kalley, pouco consta sobre ela. Mas era uma jovem, talvez mais nova do que seu pai e que era filha de um industrial. Kalley também tinha uma irmã chamada Jane Dow Kalley.
Batizado com 38 dias de idade na tradição presbiteriana, ficou órfão do seu pai com dez meses de idade e depois de dois anos de viuvez, sua mãe se casa novamente com David Kay que também era viúvo e já tinha quatro filhos. O padrasto teve de cuidar de Kalley, pois antes de completar seis anos ele perde sua mãe.
As duas perdas consecutivas causou em Kalley uma espécie de incredulidade, um sentimento de hostilidade contra Deus.
Seguiu sua carreira acadêmica de modo brilhante, pois em 1829, com 20 anos, diplomou-se em Farmácia e cirurgia na Faculdade de Medicina e Cirurgia de Glasgow. Isso era importante para Kalley, pois estes tipos de aprovações não assinalavam tão somente sua eficiência, mas também quem era.
Sob o ponto de vista emocional, a incredulidade de Kalley o transportava para um mundo que o fornecia alívio para as questões existenciais, e respostas coerentes sob o ponto de vista lógico também.
Sua fuga e conflito existencial encontrava abrigo na dança; na bebida; nos esportes; porém todas estas atividades eram ilusórias, gerando ao final a frustração, deixando um vaio de um objeto externo que sempre necessitava ser realimentado.
Em 1835, acontece uma grande virada na vida de Kalley. Ao atender uma senhora anciã, vítima de uma terrível doença. Ela solicita que Kalley pege um pão duro que estava guardado e ele assim fazendo observa a mulher fechar os olhos e agradecer pelo alimento. Intrigado com a situação, Kalley questiona a mulher e ela testemunha que sua paciência e conforto vinham da fé que tinha em Jesus. Deste momento em diante, Kalley passa a buscar na Bíblia estas e suas respostas.
O desenvolvimento da ideia de ser missionário foi rápido e em 1836 foi desafiado a substituir Robert Morrison, missionário na China que havia morrido em 1834. Porém, por falta de campo de missões na China, não pode ir.
Kalley casa-se com Margareth Crawford em 2 de fevereiro de 1838, continuando seus estudos que concluiu em 1 de maio de 1838. Porém Margareth não se dava com o clima, levando a família Kalley descer para Ilha da Madeira que tinha um clima mais salutar e agradável.
Chegaram à Ilha da Madeira em 12 de outubro, inicialmente para uma pequena estadia, tempo suficiente para a recuperação de Margareth e de sua irmã Annie.
Nos seus atendimentos médicos em sua casa ou na casa do paciente, antes de tudo ele se ajoelhava e pedia a Deus que o orientasse em seu trabalho; nas receitas, por exemplo, além dos remédios sempre colocava versículos bíblicos para reflexão.
No final de 1841, instalou-se forte perseguição para finalmente, em 9 de agosto de 1846, Kalley, sua esposa e alguns madeirenses foram expulsos a bordo do navio inglês Forth. Após a expulsão, Kalley e família aportaram na Inglaterra.
Em 1850, transferiu-se para Beirute, permanecendo como médico e evangelista entre os judeus até 1852. Nesta cidade, em janeiro de 1852, morre a sua esposa, Margareth, vítima de tuberculose.
Em dezembro de 1852, Kalley casa-se novamente com a jovem Sarah, onde redescobre sua visão missionária, animando-o a recomeçar com novos projetos.
Quando esteve em Springfield, Kalley lê o livro de Daniel Kidder sobre o Brasil. Então, Sarah e Kalley embarcam em Southampton, em 9 de abril de 1855, com destino ao Rio de Janeiro, o próximo campo de missão. Lugar onde a Bíblia não era conhecida e não havia pregadores do Evangelho e cuja cultura e idioma lhe eram familiares.
Eles chegam ao Brasil num momento histórico favorável, pois politicamente com a abertura do país aos imigrantes, e religiosamente fragilizado pela religião oficial, o casal formaria uma estranha delegação missionária, sem quaisquer laços com igrejas ou missões.
Após desembarcarem, ficaram onze dias no Hotel Pharoux, não adaptando-se ao mesmo, devido ao mau cheiro da praia e ao barulho das barcas Ferry. Até subirem pra Petrópolis em 7 de junho de 1855.
Na busca por uma casa em Petrópolis, Kalley deparou-se com uma propriedade de Alexandre Fry, chamada Gernheim ou Lar muito amado. A primeira EBD acontece ali numa tarde de domingo.
Depois de algum tempo, Kalley começou uma turma de negros, sendo precursor, 33 anos antes da abolição, de um movimento de instrução bíblica aos menos favorecidos da sociedade, aos excluídos, àqueles a respeito de quem se discutia se eram ou não possuidores de alma.
Assim, em 1856, Kalley convidou por carta para que madeirenses se associassem ao projeto de evangelização do Brasil, vindo assim: Francisco da Gama, Francisco de Souza Jardim e Manuel Fernandes.
Fernandes foi o único dos madeirenses chamados por Kalley que não permaneceu no Rio de Janeiro, pois retorna a Illinois, não tendo ocupado no período que esteve no Brasil nenhum cargo no oficialato da Igreja Evangélica Fluminense.
O trabalho de colportagem era um dos meios encontrados por Kalley para levar o evangelho. No final de agosto de 1856 a colportagem nas duas cidades, Rio e Petrópolis, estava estabelecido, sendo que em 29 de agosto do mesmo ano, Fernandes foi preso por não possuir licença para vender os livros, sendo solto mais tarde através da mediação de Kalley junto às autoridades e pagamento de fiança.
Francisco da Gama, em sua casa, além dos cultos domésticos que realizava todas as noites e a que assistiam alguns visitantes, resolveu ali estabelecer uma escola, para ensinar a doutrina cristã, o que levantou grande oposição dos vizinhos. A escola durou só cinco meses. No entanto, em sete meses, o Sr. Gama conseguiu vender 262 Bíblias, 168 Novos Testamentos e 183 folhetos, sendo distribuídos graciosamente 4 Testamentos e 1.076 folhetos, todos por conta do Dr. Kalley, sem contar os Testamentos, Bíblias que vendeu e folhetos que distribuiu por conta própria.
É forte o trabalho de Kalley nos jornais, onde traduziu a obra de John Bunyan, O peregrino, no jornal Correio Mercantil. Causou impacto aos leitores, sendo publicados 35 capítulos, era um meio de expor as ideias evangélicas e liberais na sociedade e na corte.
No dia 8 de setembro de 1857, Kalley batiza José Pereira de Souza Louro, português, o primeiro batismo de Kalley realizado no Brasil. Em julho de 1858, realiza o primeiro batismo de um brasileiro, Pedro Nolasco de Andrade, no culto doméstico realizado na casa de Francisco da Gama e nesta data foi estabelecida a primeira Igreja Evangélica.
Após estabelecer a Igreja Evangélica, o sistema de propaganda permaneceu da mesma forma, firmando na colportagem, utilização da mídia, jornais, cultos domésticos e escola bíblica dominical.
Em 7 de fevereiro de 1859 duas senhoras da corte, Gabriela Augusta Carneiro Leão e sua filha Henriqueta foram batizadas em Petrópolis. O ato do batismo fora reservado, dentro do ambiente do culto doméstico dos Kalley, entretanto, dada a posição delas na corte despertou a ira da liderança católico romana, que junto com autoridades da época buscaram sufocar a igreja nascente.
No centro destas tensões Kalley mandou imprimir sua primeira coleção de Salmos e Hinos, com 50 hinos, impresso no Rio de Janeiro, no período de outubro e novembro de 1861.
Empregou-se em lutar pelos direitos dos acatólicos, como por exemplo, reconhecimento da liberdade de culto, casamento dos não-católicos, registro civil dos filhos, obtidos registrados em cartórios, cemitérios públicos para sepultura dos protestantes, foram alguns dos grandes feitos de Kalley.
A organização da igreja surgiu naturalmente, de acordo com as reais necessidades e possibilidades de supri-las.
Por questão de saúde, Kalley precisava viajar e começou a preparar a igreja para a escolha de líderes, os presbíteros. Outra preocupação, era a escolha de um novo líder que o substituísse para dar continuidade aquela obra.
Kalley então contatou Richard Holden para ser então seu sucessor. Ele começa como um pastor auxiliar até assumir gradativamente as atividades pastorais. Havia uma certa tensão entre Kalley e Holden, devido a divergência quanto às novas doutrinas. Porém, Holden, renuncia o cargo de pastor auxiliar e retorna para Inglaterra.
No tocante, ao sucessor, João Manuel Gonçalves dos Santos sente-se vocacionado e Kalley o envia ao Colégio de Pastores, de Charles Spurgeon.
Com um legado importante, Kalley com seu jeito independente e criativo, valoriza o encontro da memória com a identidade destas novas Igrejas.