O legado teológico do Dr. Robert R. Kalley

Em pleno século XXI, é fato destacar que há nas Igrejas do tipo Kalleyana uma contextualização natural. Mas a que ramo ela pertence? Qual o tipo de teologia e qual sua proposta eclesiológica?
Procurando dotar de identidade esta matriz teológica, faz-se um passeio pela história na busca por estas respostas. A começar das inúmeras tentativas em se modificar o nome da denominação para Congregacional. Foram em números reais quase 14 tentativas, para no final tentar incluir aquilo que já estava na raiz e no inconsciente do coletivo congregacional.
Mas qual o tipo de reforma, e de qual ramificação da reforma este modelo de Igreja veio? Ela não se padroniza a Lutero, Calvino, Zwingle, Huss, Savanarolla, Wicliff e muito menos John Wesley.
Este foco de investigação então parte lá da Ilha da Madeira, de onde veio inicialmente a forma primitiva ainda por parte do patrono e daquele que possui toda a carga e bagagem histórica: Dr. Robert Reid Kalley.
Com 30 anos, muito bem casado, com uma básica formação teológica, este personagem marcante era um missionário frustrado, pois estava descontente com a Igreja Britânica. Mesmo depois desta frustação de não poder ir à China, ele procura exercer o ministério com um jeito criativo de ser, livre das influências de grupos denominacionais, tinha atitude de um homem de fé, tendo a Bíblia, como seu livro texto básico.
Há uma suspeita de que pelo fato de perder muito cedo os pais, Kalley tenha sublimado tal perda com um racionalismo e marcas existenciais fortes. Ele era conhecido com o médico dançarino, esboçando uma incredulidade que lhe dava alívio às questões existenciais.
Aos 26 anos, foi tocado por uma experiência com Deus através de uma paciente que desafiou sua incredulidade. Sua conversão chegou por meio da fé, onde nota-se um médico dançarino se transformando em o médico evangelista, o profeta da fé.
Ele se desencantara com o modo do culto tradicional, fazendo valer o culto doméstico, algo muito forte em sua vida, pois cria que o único método que funcionara para ele, uma classe de primeiras letras usando a Bíblia e professores católicos.
Há uma necessidade de resgate histórico, pois durante a mudança das eras houve uma perda da teologia kalleyana em detrimento do Congregacionalismo Inglês e Americano.
O retorno à matriz original poderá proporcionar uma identidade mais forte das atuais Igrejas Congregacionais e uma forma de redescobrir o RNA e forjar um DNA mais forte e com uma identidade kalleyana.
Para Kalley não houve preocupação com confissões de fé tradicionais, porque é difícil resumir numa só sentença toda a experiência e histórico cristão. Mas há quatro declarações de fé encontradas e que merecem atenção.
A primeira declaração de fé trata da posição doutrinária no período em que solicitava sua ordenação. Foi o que escapou do incêndio quando expulso da ilha da madeira.
A segunda declaração, escrita em Funchal, é um texto apologético que declara sete pontos principais da fé kalleyana.
A terceira declaração foi uma resposta a perseguição quando do trabalho evangelístico realizado na casa de Antônio Patrocínio Dias, em Niteroi.
A quarta e mais conhecida declaração trata-se dos 28 artigos da breve exposição das doutrinas fundamentais do Cristianismo deixado antes do Dr. Robert partir de volta para a Escócia.
Ele era muito livre quanto à questão litúrgica, o Batismo, por exemplo era entendido com um sinal de profissão de fé adulta e que o batismo com água era uma sombra simbólica, não possuindo forma obrigatória ou universal.
Outra forma era a Ceia do Senhor, para Kalley o memorial era primazia, mas retirava o sentido transcendental dos elementos. Da mesma forma o culto, mais informal e centralizado na palavra, sendo por vezes facultativa a expressão musical. Mas é na hinologia kalleyana que pode-se notar toda a teologia e os temas diversos da doutrina intrínseca em cada hino.
Crises doutrinárias nesses períodos não eram raras. Dois são destaques: o darbismo e o dispensacionalismo. Para Kalley, por exemplo, não aceitava o ponto do darbismo que dizia que o crente participa da natureza divina, porém era visto que poderia correr o risco de caminhar para o pensamento panteísta. Ele era um apologeta e procurava com muita prudência o trato sobre as novas doutrinas.
Um aspecto que vale a pena notar, é que ele era aberto ao movimento e participação feminino. Ele reconhece em sua noiva seus dons e vocações ministeriais e incentiva o estudo e o preparo bíblico e missionário especializado. Contudo, a Igreja Fluminense era radicalmente contrária a qualquer participação ministerial feminina, restringindo a participações até na Igreja.

Desde o início do trabalho missionário no Brasil, Kalley lecionava numa classe bíblica de negros. Até então a questão não era tratada dentro da Igreja até que um dia Kalley foi questionado se era lícito um crente ter escravos ou não. Kalley deixou o assunto sobre a mesa, para depois retomar o assunto e afirmar que aquele que tinha escravos feria o princípio da liberdade humana.
A Igreja foi sendo conduzida para um modelo de pessoas livres. Kalley não era precipitado nas decisões, ele costumava refletir para ter uma posição mais norteadora e decisória das situações.
No caso da questão da escravatura, João Severo de Carvalho apresenta a carta de alforria a seus dois escravos, porém, infelizmente, Bernardino de Oliveira Rameiro é excluído por não acatar admoestação Bíblica.
Diante de um estilo totalmente independente, Kalley via-se obrigado também a manter um certo diálogo com todos os seguimentos da sociedade a fim de conquistar espaço para o desenvolvimento de sua fé. No espaço das leis, surgiram oportunidades de associações com políticos, maçons, galicanistas, regalistas, jansenistas, liberais, enfim, um relacionamento com pessoas que não era religiosas, mas que buscavam um bem comum.
Ele era amigo de todos. Tinha como cliente e amigo, por exemplo, o Bisco de Funchal, o primeiro que o advertiu sobre a sua expulsão na Ilha da Madeira. No Brasil, tinha uma amizade como o Padre Muniz. O revisor dos textos e hinos era José Luiz Malafaia, mesmo sendo católico convicto.
As atuais igrejas devido a característica fortemente individualista possuem séria dificuldade para ser tornar participante de um diálogo mais aberto e que corrobore com um ambiente religioso com outros que não os da fé. A raiz kalleyana orienta a vencer estas barreiras e tornar os crentes pré-dispostos a um diálogo.
Em todo o ministério no Brasil, o maior objetivo de Kalley era desenvolver um evangelismo aos brasileiros e utilizar todos os recursos que estivessem à mão para que se fosse conhecida a Palavra de Deus. Como profeta da fé, sua estratégia era para se aproximar cada vez mais da sociedade brasileira. Um recurso era sua função não pastoral, mas médica, de seus artigos nos jornais, seus contatos políticos e sociais. Através da colportagem, utilizou também o ministério dos discípulos madeirenses que chegavam até a população mais simples. Enfim, seu objetivo era romper com o monopólio da religião oficial da época e permitir a conquista de uma fatia de fiéis.
Como o uso de diversos pseudônimos, ele chegava por meio da imprensa escrita nos lares ou que irritava os oponentes, pois era de fácil identificação por causa da sua sempre mesma forma literária. Era um publicitário ao seu tempo.
O modo como a Igreja Fluminense surgiu no seio da sociedade da época era percebido pela ação profética e pela participação nos diversos segmentos da sociedade.
Não poderia haver conchavos, conciliações ou barganhas, não era da natureza de Kalley. Ele foi reconhecido pelo governo brasileiro e este trabalho nos bastidores do Brasil Império possibilitou a aprovação de leis de interesse dos acatólicos, assim como a reintegração de leis anteriores, principalmente, no que se refere à liberdade de culto.
O nascedouro brasileiro fez-se em meio à religião católica, por tanto, no consciente coletivo ser patriota é ser católico. Não havia opção nas questões no que tangia a fé. Negar a fé era negar o próprio país.
A única religião por tanto disponível para os brasileiros era a religião oficial do império, pois as igrejas de imigração era implantadas sem preocupação alguma com os nativos, tendo suas práticas conforme às origens, inclusive o idioma.
Em suas práticas pastorais, Kalley desafiava seus discípulos a pregarem a Palavra de Deus e em todo tempo testemunharem a fé. Era feita na clandestinidade, chegando a passar desapercebida da autoridade local.
O primeiro sinal de repressão acontece em Petrópolis, quando uma senhora que era evangelizada por José Pereira Louro, foi visitada por um subdelegado que retirou sua Bíblia e outros livros para exame.
Chegou ao ponto de Kalley ser proibido de exercer a medicina, pois o subdelegado mesmo não levando em conta que Kalley tinha licença do império devido epidemia de cólera, o proibiu. Retomando sua licença quando defende sua tese na Escola de Medicina do Rio de Janeiro.
No ano de 1859, o casal Kalley já desgastado das acusações de realizar o culto doméstico, leva o Dr. Kalley a entregar uma súmula com onze quesitos aos juristas do império brasileiro. Os juristas dão parecer favorável a Kalley, abrindo caminho para aprovação imperial.
Mesmo com a medida governamental, as perseguições não pararam. Mas continuaram na busca por um caminho que transformaram indiscutivelmente os paradigmas daquele tempo. Vence politicamente os episódios de perseguição, mas sempre com a ação contrária da religião oficial.
A vida e obra de Kalley não se limitaram aos protestos com seus pseudônimos ainda que percebidos por poucos na sociedade. Ele possuía uma liberdade suficiente para modificar símbolos importantes de sua comunidade, como por exemplo, sua posição contrária ao batismo de crianças inicial para o batismo de adultos. E sempre que ele encontrasse no meio de assuntos que merecessem certa atenção, pediu tempo para refletir e decidir sobre tais assuntos de modo mais ajuizado e julgando pelo viés da justiça.
Surge assim um novo modelo de pensar teológico, onde a ênfase se dá na evangelização, no discipulado, no culto, na comunhão do corpo de Cristo e no serviço Cristão. Este é o jeito kalleyano de ser. Livre para servir ao Reino de Deus em toda sua plenitude, algo que pode e deve servir às futuras Igrejas, fruto das comunidades independentes dos últimos dias.